126. Articulação das missões

Chamou o Padre Mandas, confiou-lhe o cuidado das povoações da Costa da Pescaria e partiu.
Chegou a Cochim a 20 de janeiro de 1545; ali se deteve para tratar dos interesses daquela cristandade com D. Miguel Vaz, vigário geral de Goa, que ali trabalhava, incansavelmente pela salvação das almas, sob a sua direção, e viu coxas pesar que os obstáculos que se opunham aos progressos do Cristianismo eram bastante difíceis de vencer.

Cobiça dos portugueses - A cobiça dos portugueses, os desregramentos dos seus costumes, a sua severidade e dureza para os indígenas, era espinhos que em extremo mortificavam o coração do nosso Santo.
Os funcionários do governo, longe de secundarem os desejos de D. João III, prestando à religião o apoio das suas autoridades, deixavam-se seduzir pelo oiro dos brâmanes e toleravam o culto dos ídolos na cidade de Goa.
Os cargos públicos eram vendidos aos muçulmanos, ao passo que os cristãos eram deles excluídos. Concedia-se ao rei de Cochim, tributário do de Portugal, a liberdade de confiscar os bens de todos os seus vassalos que abraçassem o Cristianismo.
D. Miguel deplorava amargamente um semelhante estado de coisas que punha entraves a todos os esforços do seu zelo; desejava que Francisco Xavier fosse levar as suas queixas aos pés do trono; porém o grande apóstolo não podia ausentar-se sem perigo para as suas cristandades, e ficou combinado que D. Miguel Vaz embarcaria no primeiro navio a fazer-se à vela, e iria apresentar ao rei, em nome de Xavier, as queixas da religião.
Francisco Xavier escreveu a D. João III com tanta energia, dignidade e santa liberdade, na convicção de que ela agradará, não obstante ser algum tanto longa.]
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A D. JOÃO III, REI DE PORTUGAL
Cochim, 20 de Janeiro 1545
Duma tradução em latim, feita em 1661
Senhor!
Fim que Deus teve em dar ao rei de Portugal o império da Índia e contas que lhe há-de pedir.
1. Muito desejo que Vossa Alteza tenha presente e lhe suplico o considere consigo mesmo: que Deus Nosso Senhor concedeu a Vossa Alteza, de preferência a todos os outros príncipes cristãos, o Império destas Índias, para o experimentar e ver com que fidelidade cumpre o encargo que lhe foi confiado, e com que agradecimento corresponde aos benefícios recebidos. Porque, nisto, não olhou tan­to o Senhor a enriquecer o real fisco de Vossa Alteza, com o produto de frutos preciosos trazidos de longes terras ou com a importação de peregrinos tesouros, quanto, com a ocasião de heróicos empreendi­mentos, oferecer benignamente à virtude e religiosidade de Vossa Alteza a oportunidade de distinguir-se e mostrar o seu ardente zelo, aplicando ao trabalho apostólico activos missionários que por Vossa Alteza tragam ao conhecimento do Criador e Redentor do mundo os infiéis destas regiões.
2. Com toda a razão recomenda insistentemente Vossa Alteza, aos que envia a estas regiões, que trabalhem infatigavelmente na propagação da nossa santa fé e aumento da religião, pois sabe Vossa Alteza que Deus lhe há-de pedir conta da salvação de tão numerosos gentios, que estariam dispostos a seguir melhor caminho se hou­vesse alguém que lho mostrasse. Submergidos, porém, por escassez de mestres, em obscuras trevas e imundícies de gravíssimos crimes, ofendem continuamente o seu Criador e eles mesmos precipitam miseravelmente as suas almas na morte eterna.

Elogio ao Vigário geral que vai a Portugal e necessi­dade de que volte para a Índia
3. Miguel Vaz, que tem sido aqui Vigário e agora vai encon­trar-se com Vossa Alteza, o informará do que tem visto por si mesmo, da docilidade destas nações para abraçar a fé, e das demais circunstâncias favoráveis que aqui há para a sua cristianização. Este senhor é tão desejado pelos cristãos daqui, que convém o reenvie para cá Vossa Alteza no ano que vem, para consolação e protecção deles. Aliás, os próprios interesses de Vossa Alteza reclamam essa determinação, pois a grave obrigação que pesa sobre Vossa Alteza de procurar a glória de Deus nestas paragens, a descarrega em tão idóneo e laborioso delegado. Estando à frente desta obra admi­nistrador tão fiel e experimentado, pode Vossa Alteza descansar tranquilamente, seguro de que ele, com a sua excelente virtude – que submetida à prova por tantos anos mereceu a veneração de todo este povo – não deixará passar ocasião alguma para defesa e dilatação da religião.
4. Uma e outra vez rogo e suplico a Vossa Alteza que, se quiser olhar pelo serviço de Deus e pelos interesses da Igreja, se quiser ga­lardoar de algum modo nesta vida a tantas pessoas probas e honradas que vivem na Índia, aos cristãos recentemente convertidos à nossa santa fé, e a mim mesmo, nos mande de volta o Vigário Miguel Vaz, que dentro de pouco vai partir daqui. Não me movem a pedir isto outras razões, a não ser a glória divina, o aumento da nossa santa fé e o descargo de consciência de Vossa Alteza. Deus Nosso Senhor me é testemunha de que digo a verdade, porque sei quão desejado é, nestas partes, varão tão exímio, e quanta necessidade há dele. De maneira que, para cumprir com o meu ofício e descarregar também eu a minha consciência, digo e asseguro a Vossa Alteza que – para que se promova e dilate a nossa santa fé, para que os que vão sendo agregados à Igreja não sejam arrancados a ela e voltem às suas na­turais superstições, ofendidos e aterrados com as muitas injúrias e graves vexames, que recebem principalmente dos funcionários de Vossa Alteza – é absolutamente necessário mandar-nos de volta Miguel Vaz que é quem tem fortaleza e constância para se opor aos perseguidores dos cristãos.

O Bispo de Goa, embora de consumada virtude, tem já muita idade e necessita de ajudante
5. Embora o Bispo seja de virtude tão consumada como real­mente é, não ignora Vossa Alteza que, na sua velhice e achaques, ainda que lhe sobrem e aumentem de dia para dia as forças espiritu­ais, carece das corporais para suportar os extraordinários trabalhos que supõe o diligente cumprimento do governo destas partes. É bem verdade que Deus lhe concede tanta graça que, quanto mais se debilita no corpo, mais se robustece no espírito. Este é o galardão que Deus Nosso Senhor concede aos que perseveram muitos anos no seu serviço e empregam toda a vida e forças em levar por sua cau­sa os maiores trabalhos, até obter quase completa vitória do seu cor­po, sempre rebelde ao espírito. A esses concede Deus, nos últimos anos, o fruto das suas contínuas lutas, para exemplo e perseverança dos súbditos, ao verem como eles se sentem rejuvenescer, com a renovação das suas forças espirituais, precisamente na idade em que a natureza degenera, oprimida pelos males da velhice decrépita. E assim, na medida em que vão decaindo as forças, vai-se mudando o corpo, de terreno em espírito celestial, com o exercício da virtude. Por isso urge que se dê ao Bispo ajuda, para que possa levar a carga do seu ofício.

Pede mais exigência com os funcio­nários reais da Índia e mais autoridade e independência para quem esteja à frente do Padroado missionário
6. Peço a Vossa Alteza e pela glória de Deus lhe suplico que, com a mesma rectíssima intenção e sinceríssima verdade com que escrevo estas linhas, aceite também com correspondente equidade e benevolência as minhas sugestões. Com o único desejo da honra e glória de Deus e o de descarregar a consciência de Vossa Alteza, lhe rogo instantemente que recomende aos seus funcionários da Índia as coisas do serviço divino. Não só por cartas, mas também aplicando justas penas aos que forem negligentes no cumprimen­to dos seus deveres e sancionando as suas recomendações com exemplares castigos. Porque existe o perigo de que, quando Deus Nosso Senhor o chame a Juízo [e isto pode suceder quando menos se espera, e esse Juízo é absolutamente iniludível], possa ouvir de Deus irado: «Porque não advertiste os que na Índia recebiam de ti autoridade e eram teus súbditos, de serem meus inimigos quan­do, a esses mesmos, se os encontrasses negligentes na vigilância e cuidados dos impostos e do fisco, os castigarias severamente?» E não sei que valor teria para escusar Vossa Alteza naquele transe a resposta: «Todos os anos, ao escrever para lá, recomendava as coisas do vosso serviço». Pois se lhe replicaria imediatamente: «Aos que recebiam com indiferença estes santos mandatos, deixáva-los impunes; quando, ao mesmo tempo, aos que se mostravam pouco fiéis ou negligentes no governo das tuas coisas, lhes aplicavas as devidas penas».
7. Peço e rogo o mais encarecidamente que posso a Vossa Alteza que, pelo zelo ardente que tem da glória de Deus, e pelo cuidado que sempre põe em cumprir o seu dever no que se refere a Deus, e para descargo da sua consciência: envie à Índia um ministro idóneo, com a necessária autoridade, cujo único cuidado seja olhar pela salvação de inumeráveis almas que perigam nestas paragens; e este, no de­sempenho do seu cargo, receba de Vossa Alteza autoridade que não dependa das ordens e jurisdição daqueles a que Vossa Alteza confia o encargo dos impostos e negócios do seu reino. Assim se evitariam, no futuro, os muitos e graves inconvenientes e até escândalos que, em tempos anteriores, tem sofrido aqui a religião.

Não há proporção entre os meios destinados ao Padroado e aos outros interesses reais
8. Considere bem Vossa Alteza e faça exactas contas de todos os benefícios e bens temporais que, pela graça de Deus, recebe destas Índias. Separe, da soma total, o que nestas regiões emprega no servi­ço de Deus e bem da religião. E assim, fazendo uma serena compa­ração entre os interesses da coroa real e os de Deus e da sua glória, faça a distribuição que o ânimo agradecido e religioso de Vossa Alteza creia boa e equitativa, tendo o cuidado de que o Criador de todas as coisas, que tão pródigo se tem mostrado em conceder-lhe bens, não pareça receber de Vossa Alteza uma remuneração escassa e parca. Nem vacile por mais tempo, nem o retarde Vossa Alteza, pois por muito que se apresse, toda a diligência é pouca. O amor verdadeiro e ardente que tenho por Vossa Alteza me move a escrever isto. De facto, imagino as vozes de queixa, que da Índia se elevam ao céu, por Vossa Alteza se mostrar avaro com ela, uma vez que, dos abundantes benefícios que daqui vão para enriquecer o real erário, só uma pequena parte dedica Vossa Alteza ao remédio das gravíssimas necessidades espirituais que há nestas regiões.

Estado geral das missões em Ceilão, Goa, Cabo de Comorim e Cranganor. Necessidade de missionários jesuítas de que possa dispor para a Índia e Extremo Oriente
9. Creio que não desagradará a Vossa Alteza conhecer em que ponto e estado se encontra o negócio da salvação das almas nestes seus povos da Índia, aos que, por cargo, tem obrigação de atender. Em Jafanapatão (*Jaffna) e na costa de Coulão3, só neste ano, facilmente se agregarão à Igreja de Jesus Cristo mais de cem mil pessoas4. Não falo da ilha de Ceilão: oxalá que o muito favor que Vossa Alteza concede ao seu rei5 suavizasse a dureza com que se empenha aquele príncipe em excluir Jesus Cristo de todos os territórios da sua ju­risdição.
10. Rogo a Vossa Alteza que envie a estas partes muitos da Companhia [de Jesus] que sejam suficientes, não só para batizar e instruir na doutrina cristã tantas pessoas que se sentem movidas a abraçar a fé em Jesus Cristo nestas paragens, mas também para en­viar alguns a Malaca e regiões circunvizinhas, onde são muitíssimos os que se fazem cristãos6.
O P. Mestre Diogo e micer Paulo estão no colégio da Santa Fé. Uma vez que eles escrevem muito por miúdo a Vossa Alteza sobre aquela santa casa, nada mais digo dela, a não ser que não leve a mal pedir a Vossa Alteza, como última graça, que escreva a Cosme Anes7, para que leve a termo e acabe aquele santo colégio que ele começou e promoveu: que não se canse daquela obra, pois Deus, em primeiro lugar, e também Vossa Alteza, o galardoarão como merece por tão preclara obra.

3 Região meridional do Malabar, que outrora pertenceu à jurisdição de Iniqui­triberrim e de Mârtânda Varma.
4 Esta esperança desvaneceu-se com o fracasso da expedição punitiva contra Jaffna (Xavier-doc. 51,1) e com a resolução que se tomou de não ajudar os reis de Coulão e Travancor, por consideração com o imperador de Vijayanagar .
5 Bhuvaneka Bâhu, rei de Cota (Kôttê, perto de Colombo) em 1521-1551, chamado também imperador de Ceilão. Xavier entregou-lhe, em princípios de 1544, uma carta de D. João III para que aderisse à fé cristã, como prometera por um delegado seu, mas em vão (ib. 588). Xavier ainda não sabia que este mesmo rei de Cota tinha matado o príncipe Yugo em 20 de Janeiro de 1545 (cf. Doc. Indica I 44 59).
6 Ainda não sabia Xavier que dois reis de Macassar se tinham convertido ao cristianismo.
7 Cosme Anes, de nobre estirpe, foi um dos fundadores do colégio de S. Paulo. Era amicíssimo de Xavier e da Companhia de Jesus. Tinha ido para a Índia em 1538, com o cargo de Escrivão geral da matrícula, vindo a desempenhar depois o de Secretário geral (1547-1548) e o de Vedor da fazenda real (1548-1560). Morreu em Goa, em 1560.
11. Francisco Mansilhas e eu encontramo-nos no Cabo de Co­morim com os cristãos que converteu Miguel Vaz8, vigário do Bispo da Índia. Agora tenho comigo três sacerdotes naturais desta terra9.
O colégio de Cranganor10, obra do Padre Frei Vicente11, vai em notável aumento. Se Vossa Alteza o continuar a favorecer, como tem feito até agora, irá de bem em melhor. Há motivo para dar muitíssi­mas graças a Deus pelo enorme fruto que brota daquele colégio para glória de Jesus Cristo Nosso Senhor. Espera-se fundadamente que, dentro de poucos anos, saiam dali varões religiosos que levem todo o Malabar, atolado actualmente em vícios e erros, a ter vergonha salutar do seu miserável estado, e que iluminem aqueles entendi­mentos cegos com a luz de Cristo Nosso Senhor e lhes manifestem o seu nome, graças ao trabalho e ministério desses discípulos de Frei Vicente. Rogo e suplico a Vossa Alteza que, pela causa de Deus, se digne favorecê-lo, manifestando-lhe a sua régia benignidade e con­cedendo-lhe a esmola que pede.

Espera morrer na missão
12. Como espero exalar o último suspiro nestas regiões da Índia, e já não tornarei a ver Vossa Alteza neste mundo, rogo-lhe que me ajude, com as suas orações, para que na outra vida, com mais des­canso do que o que agora temos, nos vejamos mutuamente. Peça a Deus Nosso Senhor por mim, o que eu lhe peço também por Vossa Alteza: que nesta vida lhe dê graça para sentir e fazer o que, na hora da morte, desejaria ter feito.

De Cochim, a 20 de Janeiro de 1545
Servo de Vossa Alteza, FRANCISCO

8 Em 1536-1537 (cf. SCHURHAMMER, Die Bekehrung 209-224).
9 Francisco Coelho, Manuel e Gaspar.
10 Cranganor, para norte de Cochim, ficava na região dos cristãos de S. Tomé.
11 Frei Vicente de Lagos OFM, da Província da Piedade dos franciscanos refor­mados (capuchos) a que pertencia também o Bispo de Goa, foi para a Índia com este prelado em 1538 e em Cranganor fundou o referido colégio para filhos dos cristãos de S. Tomé. Morreu em 1552. Era amicíssimo de Xavier e da Companhia de Jesus (SCHURHAMMER, Ceylon; Quellen).

46 bis12
GRAÇAS E INDULGÊNCIAS QUE PEÇO PARA REMÉDIO DESTES MALES E DAS MUITAS ALMAS PERDIDAS QUE POR ESTAS PARTES ANDAM
Princípios de 1545

             1. Se a Vossa Alteza parece bem: mandar, a todos os que têm en­cargo da justiça na Índia, que nenhuma testemunha seja válida sem primeiro se confessar e levar um bilhete do seu confessor [de] como é verdade que está confessada [e só assim] faça o juiz o seu ofício13; e, o que a testemunha assentar, que não seja válido nem se [lhe] dê fé, até que, sobre o que tem assentado, tome o Senhor e traga outro bilhete de seu confessor que faça fé de como tomou o Senhor; sejam válidas testemunhas assim e doutra maneira não, para que não digam os in­fiéis destas partes que falam mais verdade jurando eles sobre os seus pagodes, que os portugueses sobre os Evangelhos14.
2. [E porque é necessário que Vossa Alteza olhe] muito por ela15 [Índia], por Deus Nosso Senhor lhe ter dado como rei, seu pai16 e, depois, Vossa Alteza, para governo a bem dela, peço a Vossa Alte­za, por amor e serviço de Deus Nosso Senhor, que mande pedir a Sua Santidade, dos tesouros da Igreja, esta graça e indulgência, tão necessária para estas partes da Índia: que em qualquer lugar da Ín­dia, povoado de portugueses, nos dias em que se celebra a festa de qualquer ermida ou ermidas do lugar onde vivem, todos os que se confessarem ou comungarem em sua véspera ou dia, ganhem indul­gência plenária. Porque faço saber a Vossa Alteza que muito pouca é a gente da Índia que se confessa: é que, na Quaresma, a gente de guerra anda de armada e os casados e pobres vão para o mar ganhar a vida. De maneira que, senhor, na Quaresma não se confessam e, ainda que quisessem, não poderiam confessar-se todos, por serem muitos17…

12 É de crer que era um suplemento a outra carta que o santo escreveu a D. João III em 20 de Janeiro de 1545 e que o seu amigo, o Vigário geral Miguel Vaz, devia entregar ao rei juntamente com o seu próprio relatório sobre a missão da Índia. Essa outra carta extraviou-se (cf. EX I, 255 n. 46a).
13 À margem, faz notar o secretário do Rei sobre a resposta a enviar a Xavier: «Que isto não parece bem pelos inconvenientes».
14 Aqui, acrescenta o secretário, à margem: «Tomará (o) Senhor e jurará para isso». Cf. tentativas de S. Inácio de Loyola sobre o reforço do decreto do Papa Inocêncio III, Cum infirmitas, segundo o qual, aos doentes que recusam os auxí­lios espirituais, também se lhe devem negar os auxílios do médico (Monumenta Ignatiana – Epistolae I,). Numa post-data de Janeiro de 1544 comunicava Inácio a Xavier o êxito das suas tentativas em Roma (ib. 271).
15 Na incompleta parte antecedente, falava Xavier da Índia. Por isso completa­mos assim: «E porque é necessário que V. A. olhe por ela».
16 D. Manuel I.
17 Este segundo pedido devia seguir para Roma. Por isso, o secretário acres­centou à margem: «Que S.A. mandará suplicar e lhas mandará». Efectivamente D. João III escrevia em 19 de Fevereiro do ano seguinte, 1546, ao seu embai­xador em Roma: «Peçais da minha parte as graças e faculdades declaradas na informação, que vos com esta envio… E, porque o tempo é tão curto, daqui à partida das naus para a Índia, e há lá muito grande necessidade destas faculdades que mando pedir a Sua Santidade, e as queria por isso mandar nesta armada,… trabalheis, quanto vos for possível, com Sua Santidade, que vos queira conceder todas as ditas faculdades logo». A carta real não chegou a Roma an­tes de 4 de Abril: demasiado tarde, pois naquela mesma semana saíam de Lisboa as naus da Índia (ib. VI, 47).
[*Cartas - Pela mesma ocasião escrevia o nosso Santo a Santo Inácio pedindo que lhe mandasse Padres da sua Companhia de reconhecida virtude e de saúde robusta e capazes de resistirem a grandes fadigas
Xavier escreveu também ao seu amigo Simão Rodrigues, que se conservava ainda em Lisboa, pedindo igualmente para que lhe enviasse obreiros evangélicos. Desta carta se deixa conhecer toda a sensibilidade do amável coração do nosso Santo. Isto não era bastante para o coração do santo apóstolo; ele remeteu ainda pelo Pe. Miguel Vaz uma extensa carta dirigida à Companhia de Jesus em Roma. Parece que toda a sua alma se expande sobre aquelas páginas, que se segue.]
47
AO PADRE INÁCIO DE LOYOLA
Cochim, 27 de Janeiro 1545
Duma cópia em castelhano, feita em 1567
IHS.
Pax Christi
A graça e amor de Deus Nosso Senhor seja sempre em nossa aju­da e favor. Amen.

Manda pedir ao Papa faculdades privilegiadas para celebrações no altar-mor do colégio e outras graças e indulgências já antes referidas
1. Para satisfazer aos devotos do colégio da Santa Fé1 e princi­palmente ao Governador (*Martim Afonso de Sousa) por ser tão devoto daquele colégio, por amor e serviço de Deus Nosso Senhor, [vos rogo] que, se puder ser, mandeis aquela graça que vos mandaram pedir que alcançásseis de Sua Santidade: que o altar-mor daquele santo colégio seja privilegia­do, que todos os que disserem Missa nele por um defunto saquem uma alma do purgatório, da maneira que haverá agora dois anos vos escrevi da parte do Governador, com outras graças e indulgências que da sua parte [também] vos escrevia3.

Qualidades físicas e espirituais requeridas para os missionários a enviar para a Índia. Dureza de clima, de meios e de perigos que os esperam. Rezem também por ele
2. As pessoas que não têm talento para confessar, pregar, ou fazer coisas anexas à Companhia [de Jesus], depois de terem acabado os seus Exercícios [Espirituais] e terem servido em ofícios humildes alguns meses4, fariam muito serviço nestas partes, se tivessem forças corporais juntamente com as espirituais. É que, para estas partes de infiéis, não são necessárias letras, senão ensinar as orações e visitar os lugares, batizando os meninos que nascem: morrem muitos sem se­rem batizados por falta de quem os baptize, porque a todas as par­tes não podemos acudir. Por isso, os que não são para a Companhia [de Jesus]5, e virdes que são para andar de lugar em lugar batizando e ensinando as orações, mandá-los-eis, porque aqui servirão muito a Deus Nosso Senhor.
Digo que sejam para muitos trabalhos corporais, porque estas par­tes são muito trabalhosas, por causa dos grandes calores e, em muitas partes, faltosas de boas águas. Os mantimentos corporais são poucos e são só estes, sem haver outros: arroz, pescado e galinhas, sem haver pão, nem vinho, nem outras coisas de que nessas terras há muita abun­dância. Hão-de ser [mancebos] sãos, e não enfermos [nem velhos], para poderem levar os contínuos trabalhos de batizar, ensinar, andar de lugar em lugar batizando os meninos que nascem e favorecendo os cristãos nas suas perseguições [e insultos] dos infiéis.

1 Por ex. Cosme Anes, Mestre Diogo, Francisco Toscano (cf. SCHURHAM­MER, Quellen 2263).
3 No Xavier-doc. 16.
4 Já em 1539, Inácio e os seus companheiros tinham determinado: «Os que hão-de ser admitidos, devem, antes de ser provados com o ano de provação, em­pregar três meses em fazer Exercícios Espirituais, em peregrinar e em serviço dos pobres nos hospitais ou em outros serviços» (MI Const. I 12).
5 Só em 1546 Paulo III, pelo Breve Expone nobis, permitiu que, além dos jesuítas professos, se admitissem também na Ordem coadjutores espirituais clé­rigos e temporais leigos (ib. 170-171). Mas em 1547, ainda se duvidava: «Se, os que não são professos na Companhia, se devem chamar da Companhia de Jesus. E parece que não» (ib. 274).
E também Deus Nosso Senhor lhes fará mercê, aos que vierem a estas partes, de se verem em perigos de morte. Isto não se pode evitar senão pervertendo a ordem da caridade: e [mesmo] guar­dando-a, hão-de passar por eles, recordando-se que nasceram para morrer pelo seu Redentor e Senhor. É por esta causa e razão que hão-de participar de forças espirituais. Porque destas careço e ando em partes que tenho muita necessidade delas, por amor e serviço de Deus Nosso Senhor vos rogo que tenhais especial memória de mim, encomendando-me a todos os da Companhia: dos perigos que Deus Nosso Senhor me tem guardado, creio, sem duvidar, que foi por vossas orações e dos da Companhia. Esta conta vos dou destas partes, para os que haveis de [nos] mandar.
E os que virdes que têm forças corporais para levar os trabalhos que tenho dito e não para mais, não deixeis de mandá-los, porque também há partes, nas quais não há perigos de morte, onde muito poderão servir a Deus. Já disse que para andar entre infiéis não têm necessidade de letras: [a] estes, andando nestas partes durante alguns anos, Deus Nosso Senhor lhes dará forças para o resto.
E os que tiverem talento, ou para confessar ou dar os Exercícios [Espirituais], mesmo que não tenham corpo para levar mais trabalhos, mandá-los-eis, porque esses ficarão em Goa ou Cochim, onde farão muito serviço a Deus. Nestas cidades há todas as coisas em abundância, como em Portugal, porque são povoadas de portugueses. Nas enfermi­dades corporais serão curados, pois há muitos médicos e medicinas, o que não há onde não habitam portugueses, como onde andamos Fran­cisco Mansilhas e eu. Em dar Exercícios [Espirituais] em cada uma destas cidades se faria grande serviço a Deus Nosso Senhor.

Tem recebido poucas cartas da Europa e ainda não chegaram dois companheiros que vinham a ca­minho
3. Quatro anos há que parti de Portugal. [Em] todo este tempo só umas cartas vossas recebi de Roma e, de Portugal, duas de Mes­tre Simão6. Desejo cada ano saber notícias vossas e de todos os da Companhia, particularmente. Bem sei que cada ano me escreveis. Eu também escrevo todos os anos. Mas temo que, assim como eu não recebo as vossas cartas, [também] não recebais as minhas. Dois da Companhia, que vinham este ano [para a Índia], não chegou a nau em que vinham: não sei se voltou para Portugal ou invernou em Moçambique, que é uma ilha nas partes da Índia, onde costumam invernar muitas naus que vêm de Portugal.

Pede notícias e missionários
4. Desejo saber notícias do Doutor Inigo López, se [já] anda de mula; porque se ainda agora anda a cavalo, como quando eu o dei­xei, grande enfermidade e fraqueza é a sua, pois com tantos médicos e medicinas não acaba de se curar e andar a pé.
Não há que mais fazer-vos saber destas partes, senão que mandeis todos os que puderdes, pois há tanta falta de operários nestas partes. Assim cesso, rogando a Deus Nosso Senhor que, se nesta vida não nos virmos, seja na outra, com maior descanso do que nesta temos.
De Cochim, a 27 de Janeiro, ano 1545

Vosso mínimo filho, MESTRE FRANCISCO

Carta 51, de Meliapor na India - 1545

Mansilhas com os Padres indígenas fica no Cabo de Comorim, os novos jesuítas que vêm a caminho irão para Ceilão, Xavier espera embarcar para Malaca na primeira monção
2. O Padre Francisco de Mansilhas com os outros Padres mala­bares, ficam com os cristãos do Cabo de Comorim: onde eles estão, não faço míngua. Os Padres que hibernaram em Moçambique12, com outros que este ano espero13, irão em companhia desses prínci­pes14 de Ceilão, quando forem para as suas terras. Espero em Deus Nosso Senhor que, nesta viagem, me há-de fazer muita mercê, pois com tanta satisfação da minha alma e consolação espiritual [Ele] me fez mercê de dar-me a sentir ser sua santíssima vontade eu ir àquelas partes de Macassar15 que novamente se fizeram cristãs.

1 Neste modo ex abrupto com que inicia a carta aparece toda a dor de Xavier decepcionado na sua esperança. Sobre este rei a entronizar, com a protecção dos portugueses, ver Xavier-doc. 48,4.
2 Pegu é um reino situado no delta do rio Irawadi, cuja capital tem o mesmo nome. Foi completamente conquistado em 1539 pelos birmaneses, comandados por Tabinshwehti. A feitoria dos portugue­ses era Cosmin (a actual Bassein?) e o porto dos turcos e gujarathes era Martavan.
3 Segundo o direito local.
4 A expedição contra Jaffna acabou por se realizar em 1560
5 O nome indígena é Mailapur (cidade dos pavões), actualmente reduzida a um bairro da cidade de Madras. Os portugueses chamavam-lhe Meliapor e tam­bém S. Tomé por aí se encontrar o sepulcro do apóstolo S. Tomé.
6 Na igreja sepulcral do apóstolo.
7 Fil. 1,6; 2,13.
8 Macassar (Celebes), para além de Malaca.
9 Ultimamente.
10 Língua malaia.
11 Xavier nunca chegou a saber suficientemente as línguas indígenas, nem da Pescaria nem das Molucas, para poder atender confissões dos cristãos (SCHURHAMMER, Die Bekehrung 232-233; Goa 12,516).
12 Refere-se a Pedro Lopes e Criminali, que tiveram de voltar a Portugal.
13 Em 1545 chegaram à Índia Criminali, Nicolau Lancillotto e João da Beira (Doc. Indica I 30*).
14 Na carta de 27 de Janeiro (Xavier-doc. 48,4) Xavier fala apenas de um prín­cipe de Ceilão (D. João). Mas, oito dias depois, chegou de Cota a Cochim outro príncipe, irmão do Yugo assassinado, que ali foi batizado com o nome de D. Luís. Ambos, D. Luís com o sobrinho D. João, tinham entretanto partido para Goa com o seu protector André de Sousa.
15 Em árabe, Makasar. No texto é tomado pela Celebes ocidental.
Estou tão determinado a cumprir o que Deus me deu a sentir na minha alma que, a não o fazer, me parece que iria contra a vontade de Deus e que [nem] nesta vida nem na outra me faria [mais] mercê. Se não forem navios de portugueses este ano para Malaca, irei nalgum navio de mouros ou de gentios. Tenho tanta fé em Deus Nosso Senhor, caríssimos Irmãos, por cujo amor somente faço esta viagem, que, ainda que desta Costa não fosse este ano navio nenhum, e partisse um catamaran16, iria confiadamente nele, [com] toda a minha es­perança posta em Deus. Por amor e serviço de Deus Nosso Senhor vos rogo, caríssimos em Cristo Irmãos, que em vossos sacrifícios e contínuas orações vos lembreis de mim pecador, encomendando-me a Deus. Ao fim do mês de Agosto espero partir para Malaca, porque estão as naus, que vão partir, aguardando por aquela monção. Ao se­nhor Governador escrevo, para que me mande uma provisão para o por este patamar encomendareis muito. Não lhe escrevo, pois esta é para todos três. Ao nosso grande amigo e verdadeiro, capitão de Malaca, [para] que me dê embarcação e tudo o necessário para ir às ilhas de Macassar. Por amor de Deus Nosso Senhor [vos rogo] que tenhais cargo de a arrecadar de Sua Senhoria e me mandá-la. Um breviário romano pequeno me mandareis por Cosme Anes.

Os novos jesuítas aprendam primeiro o português para se entenderem ao menos com os intérpretes. Voltará a escrever em Julho
3. Se da nossa Companhia vierem alguns estrangeiros que não sabem falar português, é necessário que aprendam a falar, porque doutro jeito não haverá topaz que os entenda. De Malaca vos es­creverei muito largo, dando-vos conta dos cristãos que se fizeram e da disposição que há para fazerem-se [mais], para que daí provejais de pessoas que acrescentem a nossa santa fé: pois essa casa se chama Santa Fé, é necessário que as obras correspondam ao nome. Pelos patamares que partirão por Julho, vos escreverei mais largo.
Nosso Senhor nos junte em sua santa glória, porque nesta [vida] não sei se nos veremos.
De São Tomé, a 8 de Maio do ano 1545

Vosso mínimo irmão, FRANCISCO

54
AOS SEUS COMPANHEIROS RESIDENTES EM GOA
Malaca, 16 de Dezembro 1545.
Duma cópia em castelhano, feita em 1553

Caríssimos Padres e Irmãos meus
A graça e amor de Cristo Nosso Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor. Amen.

Más notícias recebidas, impedem-no de ir para Macassar e prefere ir para Amboino (Malucas)
1. Pelo Padre Comendador1 vos escrevi largamente2, quando estava de partida para Macassar. Por serem as noticias de lá não tão boas como pensávamos3, não fui lá. Vou para Amboina4, onde há muitos cristãos5, e muita disposição para se fazerem mais. De lá vos escreverei [sobre] a disposição da terra e o fruto que nela se pode fazer. Pela experiência que tenho do Cabo de Comorim e de Goa, e da que, prazendo a Deus, terei de Amboina e das partes de Maluco6, conforme vir onde mais podeis servir a Deus e acrescentar a santíssi­ma fé de Cristo Nosso Senhor, vos escreverei.

Beira e Criminali irão para o Cabo de Comorim, onde Mansilhas os instruirá. Lancillotto ficará em Goa, professor no colégio de S. Paulo
2. Por esta carta vos peço, caríssimos Padres e Irmãos João da Beira7 e António Criminal, que, vista esta, vos façais prestes para irdes para o Cabo de Comorim, onde fareis mais serviço a Deus que estando em Goa. Lá achareis o P. Francisco Mansilhas, que sabe da terra e do modo que haveis de ter nela. Se o P. Francisco Mansilhas estiver em Goa, ireis todos três. Por amor de Deus vos rogo que não façais o contrário, e não deixeis por nenhuma coisa de ir para o Cabo de Comorim. O P. Nicolau Lanciloto ficará em S. Paulo a ensinar gramática, tal como de Portugal vinha mandado8. E, porque confio nas Vossas Caridades que não fareis o contrário do que escrevo, não digo mais.

Recomendações a Micer Paulo sobre a sua colaboração no colégio
3. Micer Paulo, rogo-vos muito, por amor de Jesus Cristo, que olheis muito por essa casa. Sobretudo vos encomendo que sejais obe­diente aos que têm cargo de governar essa casa. Nisto me fareis um grandíssimo prazer, porque se eu estivesse aí, nenhuma coisa faria contra vontade dos que têm cargo dessa santa casa, senão obedecer-lhes em tudo o que me mandassem e [também] porque espero em Deus que vos tenha dado a sentir dentro em vossa alma, que em ne­nhuma coisa lhe podeis servir tanto quanto em negar, por seu amor, vossa própria vontade9.

1 Provavelmente um sacerdote secular, comendador de alguma Ordem Mi­litar.
2 Não se encontrou esta carta.
3 Da expedição missionária de Vicente Viegas, sacerdote diocesano, a Ma­cassar, escreveu o seu companheiro Manuel Pinto  e, menos fielmente, Godinho de Erédia, neto de D. João, rei de Supa (EREDIA 42-44). Este conta que a sua mãe, D. Helena Vesiva, então de 15 anos, filha do rei de Supa, com grande escândalo dos seus parentes, tinha fugido para Malaca com o seu amante português João de Eredia (pai de Godinho) num navio português em que vinha Vicente Viegas. Seriam essas as «notícias não tão boas»? Noutra carta (Xavier-doc. 55,3), Xavier nega ter recebido notícias de Viegas.
4 Amboina, ilha do arquipélago das Malucas, a sul.
5 Em 1538 já todos os habitantes de muitas aldeias eram batizados: 7 aldeias já eram cristãs (cf. Xavier-doc. 55,3).
6 Maluco, naquela época, significava: 1) a cidade de Ternate; 2) a ilha de Ter­nate; 3) cinco ilhas das Malucas, a saber, Ternate, Tidore, Motir, Makian, Batjan; 4) como no texto, as Malucas em sentido amplo (as Malucas do norte e do sul, com Halmaeira, Seran, Amboina, etc.).
7 João da Beira, nascido em Pontevedra (Galiza), sendo cónego em La Co­ruña, entrou na Companhia de Jesus em 1544 e em 1545 partiu para a Índia. Em 1547-1556 foi missionário nas Malucas, mas voltando doente a Goa aí morreu em 1564.
8 Cf. Xavier-doc. 16,6.
9 Refere-se aos Mordomos da Confraria da S. Fé, que tinham fundado o colégio e pedido a colaboração da Companhia de Jesus. Os responsáveis mais directos eram Cosme Anes e Mestre Diogo. Não asseguravam grande orientação pedagógica ao colégio, apesar da boa vontade. Lancillotto lamentaria a seu tempo: a falta de selecção nos alunos, as admissões em idades muito desiguais, o desco­nhecimento das línguas dos alunos, a dificuldade de expulsão dos que mostravam maus costumes. Só quando a Companhia de Jesus assumiu a plena responsabilidade pôde remediar estes inconvenientes.

Pede cartas e orações
4. Escrever-me-eis notícias de todos os Padres, nossos Irmãos, e do P. Francisco de Mansilhas, pela nau que partir para Maluco10. E seja [de maneira] que me escrevais muito longamente, porque mui­to folgarei com as vossas cartas. Rogo-vos, caríssimos Irmãos, que rogueis sempre a Deus por mim em vossas devotas orações e santos sacrifícios, que por terras ando onde tenho muita necessidade de vossas orações.

Recomenda Simão Botelho a quem deve muitos favores em Malaca
5. Aí vai Simão Botelho11, amigo dessa santa casa. Ele vos dará notícias, particularmente minhas. Eu sou muito seu amigo, por ser ele homem muito de bem e amigo de Deus e da verdade. Peço-vos que tenhais a sua amizade. Ele o fez muito bem comigo, mandando-me dar tudo o necessário para o meu embarque, com muito amor e ca­ridade: Nosso Senhor lhe dê o galardão, que eu lhe fico com muita obrigação.

Deus Nosso Senhor, caríssimos Irmãos em Cristo, nos ajunte na sua santa glória, pois nesta vida andamos tão espalhados uns dos outros.
De Malaca, a 16 de Dezembro, ano de 1545
Vosso mínimo Irmão em Cristo, FRANCISCO

10 Esta nau, «nau de Maluco», partia de Goa a 15 de Abril (REBELLO 299; Xavier-doc. 56,3).

11 Simão Botelho de Andrade, nascido pelo ano de 1509, partiu em 1532 para a Índia e em 1544 foi mandado por Martim Afonso de Sousa para Malaca para introduzir aí nova administração das alfândegas. Mas como o capitão da fortaleza, Rodrigo Vaz Pereira, morreu de repente em 1544, assumiu ele o lugar até à vinda de Garcia de Sá em 1545. Regressando à Índia, visitou como «Vedor da fazenda» as fortalezas de Ormuz, Diu, Baçaim e Chaul. Compôs aquela inestimável obra Tombo da Índia. Já era considerado um grande perito, quando aos 45 anos dese­jou entrar na Companhia de Jesus. Como o confessor o dissuadisse pela idade que tinha, entrou na Ordem dos Dominicanos em Goa e nela morreu piedosamente em 1560 (SCHURHAMMER, Ceylon 269, n.1).



CARTA 56...  DE AMBOINO 05/1546

Mansilhas e Beira venham para as Molucas; os que vierem de Portugal vão para o Cabo de Comorim; tragam tudo o necessário para celebrar Missa
2. Dou-vos esta conta, para que saibais a necessidade que, de vossas pessoas, nestas partes há. Ainda que muito bem sei que aí éreis necessários, por serdes, porém, mais necessários nestas partes, vos rogo muito, pelo amor de Cristo Nosso Senhor, que vós, Padre Francisco de Mansilhas7, e vós, João da Beira, venhais a estas partes. E, para que mais mereçais nesta vossa vinda, vos mando que, em virtude da santa obediência8, venhais. Sendo caso que algum de vós for morto, outro Padre com o Padre António Criminal vireis; de maneira que, dos três, [só] um fique com os cristãos do Cabo de Co­morim e com os Padres naturais da terra. Se este ano vierem alguns da nossa Companhia, [dizei-lhes] que lhes rogo muito, pelo amor de Deus Nosso Senhor, que vão todos para o Cabo de Comorim a doutrinar e favorecer aqueles cristãos. Escrever-me-eis para Maluco, largamente, noticias dos que de Portugal este ano vierem, e me man­dareis as cartas pelos Padres que hão-de vir a Maluco.
E, para mais merecerem os que este ano do Reino vierem, pela virtude da santa obediência irão para o Cabo de Comorim.

1 Fernando de Sousa de Távora, desde 1534 colaborava na Índia com Martim Afonso de Sousa. Com ele navegou a Baçaim em 1534, a Diu em 1535 e obteve uma vitória junto a Vêdâlai em 1538. Em 1541com ele, Governador, embarcou para Suez e em 1542 contra a cidade de Bhatkal. Em 1545 foi enviado às Molucas, onde obrigou os castelhanos, em explorações coloniais na zona, a renderem-se e a regressar por Malaca e Índia à Espanha (1546-1547). A seguir foi durante três anos capitão da ilha de Moçambique (SCHURHAMMER, Quellen; CASTANHEDA; CORREA, Lendas da Índia).
2 No dia 25 de Outubro de 1542 a frota de Rodrigo López de Villalobos zarpava do porto de Navidad (porto mexicano ao norte de Acapulco) e no dia 1 de Novembro do porto de Juan Gallego, último porto mexicano (ESCALANTE, Relación del Viaje 118). Da expedição tratam abundantemente, da parte espa­nhola, Escalante, Jerónimo de Santisteban, Aganduru Moriz; da parte portuguesa, Rebello e Couto. As fontes históricas daquela época recolheu-as SCHURHAM­MER.
3 A Quaresma, naquele ano 1546, foi de 10 de Março a 24 de Abril.
4 Sobre o zelo missionário de Jordão de Freitas, ver SCHURHAMMER, Quel­len 204, 384, 3596.
5 Foi uma grande decepção para Xavier ver Jordão de Freitas ser deposto em Outubro de 1546, antes de terminar o mandato, e enviado preso para Goa.
6 Morotía (Galela).
7 Mansilhas, por desobediência, acabou por ser despedido da Companhia de Jesus (SOUZA, Oriente conquistado.
8 Sobre mandatos «em virtude do voto de obediência» v. Determinationes 1544-1549 (MI Const. I 216) e Constituições, P.)

3. Estas cartas minhas me parece que vos não podem ser dadas senão por todo o mês de Fevereiro do ano de 1547(9). No mesmo ano, ao princípio de Abril, parte de Goa uma nau do Rei para Maluco: naquela embarcação vireis. Vistas estas cartas minhas, logo partireis do Cabo de Comorim para Goa, e far-vos-eis prestes para [de lá] virdes para Maluco, como vos disse. Na mesma nau, esperam os de Maluco que há-de vir o rei de Maluco, o qual levaram preso10. Es­peram também, os portugueses de Maluco, por outro capitão novo para entrar na fortaleza de Maluco11. Se o rei aí se fizer cristão, espe­ro em Deus Nosso Senhor que, nestas partes de Maluco, se hão-de fazer muitos cristãos. Mas, ainda que ele se não faça cristão, crede que, com a vossa vinda, Deus Nosso Senhor há-de ser muito servido nestas partes.
Os dois, que para estas partes vierdes, trareis, cada um de vós, todo o guizamento necessário para dizerdes Missa. Os cálices sejam de cobre, porque é metal mais seguro que a prata, para os que anda­mos entre gente não santa. Porque confio em vós como em pessoas da Companhia, [e sei] que fareis o que tanto por amor de Deus Nos­so Senhor vos rogo e [que] para maior merecimento por obediência vos mando, não digo mais senão que, com muito prazer, aguardo por vós. Prazerá a Deus que será para muito serviço seu e consolação das nossas almas.
Micer Paulo obedeça em tudo aos responsáveis do colégio de S. Paulo, como ele faria
4. Micer Paulo, Irmão, o que muitas vezes vos tenho rogado12 pelo amor de Deus Nosso Senhor, assim em presença como por cartas, outra vez vos torno a rogar, tanto quanto posso: que procu­reis em tudo fazer a vontade aos que têm cargo da governação desse santo colégio; porque se eu aí me achasse em vosso lugar, em coisa nenhuma tanto trabalharia como em obedecer aos que regem essa santa casa. E crede-me, Irmão meu Micer Paulo, que é coisa muito segura, para continuadamente acertar, desejar sempre ser mandado, sem contradizer ao que [se] vos manda; e, pelo contrário, coisa mui­to perigosa é fazer homem a sua própria vontade, contra o que lhe mandam: ainda que acerteis fazendo o contrário do que vos man­dam, crede-me, Irmão meu Micer Paulo, que é maior o erro que o acerto.
Ao Padre Mestre Diogo, em tudo lhe obedecereis e lhe fareis a vontade, por ser ele sempre conforme à vontade de Deus Nosso Se­nhor. Fazendo isto, que tanto vos rogo, crede que em coisa nenhu­ma me fareis tanto a vontade.

Recebam bem os frades Agostinhos que vão na armada espanhola aprisionada
5. Os frades castelhanos da Ordem de Santo Agostinho, que vão para Goa, vos darão noticias de mim. Rogo-vos muito que, em tudo o que puderdes, os favoreçais, mostrando-lhes muito amor e caridade, porque eles são pessoas tão religiosas e santas que todo o bom ga­salhado merecem13. Logo aos nossos Irmãos, que estão no Cabo de Comorim, mandareis esta carta, para que venham a Goa, para [daí] virem no mês de Abril para Maluco, na nau do Rei.

9 As naus costumavam partir de Amboino a 15 de Novembro, chegar a Malaca em fins de Junho e daí sair a 15 de Novembro para aportar a Cochim no começo de Janeiro. Descarregando aí as mercadorias, só chegavam a Goa a 15 de Março (REBELLO, Informação 299-300).
10 Hairum (Aeiro), filho do rei Baiang Ullah (Boleife) e duma concubina java­nesa, nasceu em 1521. Em 1534 foi nomeado rei de Ternate, embora sem grandes poderes, pelo capitão Tristão de Ataíde, em vez de rei Tabarija que mandou preso para Goa. Apesar dos seus perversos costumes, foi protegido pelos seguintes capi­tães (António Galvão e D. Jorge de Castro). Finalmente, o capitão Jordão de Frei­tas, que desejava repor como rei Tabarija, entretanto convertido ao cristianismo, depôs o rei Hairum por costumes depravados e de lesa majestade e em Fevereiro de 1545 remeteu-o preso para Goa. Quando Hairum chegou a Malaca, em com­panhia de D. Jorge de Castro, soube-se que o seu rival Tabarija tinha morrido em 30 de Junho e que, portanto, era ele agora o sucessor do reino de Ternate. Ao saber disto, o capitão de Malaca, Garcia de Sá, libertou-o logo, enquanto não prosseguia viagem para ser julgado em Goa. Xavier ainda coincidiu com ele em Malaca uns dois meses. Em Goa, foi julgado e absolvido pelo Governador D. João de Castro e reenviado em 1546 para Ternate, com grandes honras à despedida. Reinou de 1546 a 1570, até que um português o assassinou. Uns consideraram-no um fiel vassalo de Portugal, outros um terrível inimigo do Reino e do cristianismo (Xavier-doc. 59,10-11; 82,4; 126,1-3).
11 Tanto Hairum, como um novo capitão, Bernardino de Sousa, tomaram posse em Ternate em 1546, antes que Xavier isso esperasse. Bernardino de Sou­sa era filho de Henrique de Sousa e tinha ido para a Índia em 1537. Em 1545 conquistou a praça forte de Catifa, perto de Ormuz. Em 1546 acompanhou o rei Hairum no regresso a Ternate e aí foi capitão da fortaleza em 1546-1549 e 1550-1552. Foi ele que submeteu Gilolo. Veio a morrer como capitão de Ormuz em 1557.
12 Xavier-doc. 54,3.
13 Eram quatro: Fr. Jerónimo de Santisteban (Prior) nascido em 1493 e faleci­do na cidade do México em 1570; Fr. Sebastian de Trasierra (de Reyna), falecido em 1588 em Xacona (México); Fr. Nicolau de Salamanca (de Perea) nascido em 1519 e falecido na cidade do México em 1598; Fr. Alfonso de Alvarado, falecido em Manilla em 1576

Cada um dos que vêm para as Molucas traga um colaborador, sacerdote ou leigo
6. Rogo-vos muito, por serviço de Deus Nosso Senhor, Irmãos meus, que trabalheis por trazerdes em vossa companhia algumas pessoas de boa vida, que nos possam ajudar a ensinar a doutrina cristã pelos lugares destas ilhas: ao menos cada um de vós trabalhe por trazer um companheiro. Se não for Padre de Missa, seja algum leigo, que se sinta e tenha por injuriado do mundo, demónio e carne que o têm desonrado diante de Deus e seus santos, e deseje vingar-se deles.
Nosso Senhor nos ajunte em seu santo reino, pela sua infinita misericórdia, o que será com mais prazer e descanso do que nesta vida temos.
De Amboino, a dez de Maio de 1546 anos.
(Por mão de Xavier): Vosso mínimo irmão, FRANCISCO
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A D. JOÃO III, REI DE PORTUGAL
Amboino, 16 de Maio 1546
Original ditado por Xavier em português
Senhor!
A Índia necessita de pregadores que instruam o povo cristão
1. Por outra via, escrevi a Vossa Alteza1 [acerca] da muita neces­sidade que a Índia tem de pregadores2, porque, à míngua deles, a nossa santa fé entre os nossos portugueses vai perdendo-se muito. Isto digo, pela muita experiência que tenho, pelas fortalezas por onde ando. É tanta a contratação contínua que temos com os infiéis, é tão pouca a nossa devoção, que mais azinha se trata com eles [de] proveitos temporais, que [de] mistérios de Cristo Nosso Redentor e Salvador. As mulheres dos casados3, naturais da terra, e os filhos e filhas mestiços, contentam-se com dizer que são portugueses de geração e não da lei: a causa é a míngua que há aqui de pregadores, que ensinem a lei de Cristo.

A influência dos judeus e mouros nos costumes e mentalidade dos portugueses, torna ne­cessária a Inquisição na Índia
2. A segunda necessidade que a Índia tem, para serem bons cris­tãos os que nela vivem, é que mande Vossa Alteza a santa Inquisi­ção4, porque há muitos que vivem a lei moisaica e a seita mourisca, sem nenhum temor de Deus nem vergonha do mundo5. E, porque estes são muitos e espalhados por todas as fortalezas, é necessária a santa Inquisição e muitos pregadores: proveja Vossa Alteza seus leais e fiéis vassalos da Índia de coisas tão necessárias.


1 Dia 10 de Novembro de 1545. Não se conserva esta carta.
2 Mais vezes pede Xavier pregadores (cf. Xavier-doc. 61,10; 63, 1.3.6). E tam­bém outros os pedem: o cabido da Sé de Goa em 1547; Cosme Anes em 1548; Fr. Vicente de Lagos OFM em 1549; o Vigário geral Pedro Fernandes em 1549 e Fr. Vicente de Laguna OP em 1550 (SCHURHAMMER, Quellen).
3 Os portugueses na Índia distinguiam-se entre casados e soldados. Não era per­mitido às mulheres portuguesas, a não ser em raríssimas excepções, emigrar para a Índia, como desde 1524 tinha sido rigorosamente proibido pelo Vice-rei sob seve­ríssimas penas (CORREA, Lendas da Índia II 819-820). Já Albuquerque favorecia casamentos de portugueses com mulheres indígenas, a ponto de em 1512 haver já 200 casados em Goa, 100 em Cochim, e 100 em Cananor. Em 1529, subiam já a 800 em Goa (Cartas de Albuquerque I 63; SCHURHAMMER, Quellen 124) e 60 em Malaca em 1537.
4 Claramente Xavier acha necessária a Inquisição nos meios em que vivem portu­gueses, já de costumes e fé cristãos. Noutra carta (Xavier-doc. 50,8) pede-a também para proteger os cristãos recém-convertidos dos abusos de maus portugueses. De ma­neira nenhuma, portanto, a pede para forçar judeus ou mouros a converter-se à fé.
5 Xavier refere-se aos «cristãos novos», isto é, aos descendentes daqueles judeus e mouros que forem batizados em Portugal no tempo de D. Manuel I e na Índia abandonaram a fé e se tornaram estranhos perigosos não só para a religião mas também para o governo. Por isso mesmo, a Inquisição acabou por ser instituída na Índia em 1560, já depois da morte de Xavier (JORDÃO DE FREITAS, A Inquisição de Goa.).

Recomenda dois capitães que se notabilizaram nas pazes com os espanhóis nas Molucas
3. Com Fernão de Sousa, capitão-mor duma armada que veio da Índia a Maluco em socorro da fortaleza, por causa dos castelhanos que vieram da Nova Espanha, vieram três capitães, leais e fiéis vas­salos de Vossa Alteza. Destes, mataram um os mouros de Yeilolo6, duma bombarda, chamado por nome João Galvão7. Dois outros, por nomes chamados Manuel de Mesquita8 e Leonel de Lima9, ser­viram muito a Vossa Alteza em ajudar a libertar a opressão em que estava a fortaleza de Vossa Alteza de Maluco, gastando o seu e o de seus amigos em dar de comer a pobres lascarins10 e agasalhando os castelhanos que da Nova Espanha vieram, provendo-os de vestir e de comer, mais como a próximos que como inimigos.
Esperam o galardão dos seus serviços, servido nesta trabalhosa viagem de Maluco, com tanto perigo de suas almas e vidas. Estes capitães de Vossa Alteza, como são mais cavaleiros que chatisou mercadores11, não se souberam aproveitar, para ajuda de seus gastos, do fruto do de Deus primeiramente e, depois, de Vossa Alteza, pois têm tão bem cravo que Deus nesta terra dá.
Lembre-se, Vossa Alteza, de Manuel de Mesquita, que vai numa nau com muitos castelhanos e portugueses, a quem dá de comer à sua custa e, assim, leva a sua fusta, em que veio, a carga para quem dá de comer. Leonel de Lima leva também muito gasto. Lembre-se Vossa Alteza deles, para lhes fazer mercê, pois bem lha merecem.
Deus Nosso Senhor acrescente o estado e vida de Vossa Alteza por muitos anos, para muito serviço de Deus e acrescentamento da nossa santa fé.
De Amboino, a dezesseis de Maio, ano de 1546
(Por mão de Xavier): Servo inútil de Vossa Alteza, FRANCISCO

6 Gilolo (Djailolo), reino de maometanos no litoral noroeste da ilha Halmahei­ra, cuja capital, fortemente defendida, foi assediada pelos portugueses durante três meses e finalmente por eles conquistada a 20 de Março de 1551. Desfeito assim este reino, nunca mais pôde restabelecer-se.
7 João Galvão, filho de Pedro Galvão, escudeiro, partiu para a Índia em 1531, onde se notabilizou como bravo cavaleiro. Em Agosto de 1545 partiu de Malaca para Ternate, na armada de Fernando de Sousa de Távora, à frente duma fusta, a Nª Srª da Vitória. De Ternate, seguiram a 23 de Novembro para Gilolo onde morreu, ao décimo terceiro dia de assédio, atingido por uma bombarda (RE­BELLO, Informação 231 235;).
8 Manuel de Mesquita, morador da casa real, partiu para a Índia em 1540. Em 1544 esteve em Diu ao serviço do Rei e, em 1545, tomou parte na expedição de Sousa de Távora que foi desalojar os espanhóis das Molucas. Em 1547 foi no­meado capitão da guarnição de Goa e, em 1553, da de Chaul, cargo este último que parece não ter chegado a desempenhar.
9 Leonel de Lima, nascido em Alcochete em 1516, filho de Fernando Boto, partiu para a Índia em 1538, onde permaneceu por dez anos ao serviço do Rei: pri­meiro, três anos nas Molucas, onde libertou Banda de um cerco; depois como co­mandante de navio na armada de Sousa de Távora. Em 1548 regressou a Portugal, onde entrou na Companhia de Jesus em 1550. Promovido ao sacerdócio em 1564, veio a morrer em Bragança onde fundara e fora primeiro reitor do colégio dos jesuítas (F. RODRIGUES, Hist. I/1,450-451; EMMENTA 369; SCHURHAM­MER, Quellen 1508).
10 Lascarins: soldados indígenas, tropas auxiliares dos portugueses no Oriente.

11 Chatim (Chetti): mercador (DALGADO, Glossário I 265-267).




CARTA 59, DE COCHIM 1548

Em Malaca, dá instruções missionárias a três jesuítas recém-chegados e envia-os para as Molucas

12. No ano de 1546, escrevi de Amboino, antes de partir para Maluco, aos da Companhia que naquele ano vieram de Portugal, para que no ano de 1547, nas naus que partissem da Índia para Ma­laca, viessem para aquelas partes alguns deles. E assim o fizeram. De maneira que partiram da Índia para Malaca três da Companhia: dois de Missa, João da Beira e o P. Ribeiro51, e Nicolau52, leigo. Achei-os em Malaca, quando de Maluco vim para Malaca. Com eles recebi muita consolação, um mês que estivemos juntos53, em ver que eram servos de Deus e pessoas que, naquelas partes de Maluco, haviam de servir muito a Deus Nosso Senhor. Eles partiram de Malaca para Maluco no mês de Agosto de 1547. É navegação de dois meses. Dei-lhes – neste tempo que com eles estive em Malaca – larga in­formação da terra de Maluco, da maneira que se havia de fazer nela, conforme à experiência que dela tinha. Estão tão longe da Índia que não podemos saber notícias deles senão uma vez ao ano. Muito lhes encomendei que escrevessem muito largamente para Roma, dando conta, miudamente, de todo o serviço que a Deus Nosso Senhor fazem naquelas partes e da disposição que nelas há. Assim ficamos em que o haviam de fazer.

CARTA 60, DE COHIM 1548
...Dos três da Companhia que foram para Maluco, pareceu-me bem eleger um que fosse superior dos outros, e assim elegi João da Beira, a quem obedecessem os outros como a vós. A ordem agradou-lhes muito. O mesmo penso fazer no Cabo de Comorim e nos restantes lugares onde haja vários da Companhia. Desejo que vós e os vossos devo­tos nos obtenhais graças celestiais para os que andamos entre estas gentes bárbaras. Para que façais isto com mais fervor, rogo a Deus imortal que vos faça ver sobrenaturalmente quanto necessito do vos­so favor e ajuda.

De Cochim, a 20 de Janeiro de 1548, FRANCISCO

68
AO PADRE FRANCISCO HENRIQUES (TRAVANCOR)
Punicale-Cochim, 22 de Outubro 1548
Original ditado por Xavier em português
IHUS
A graça e amor de Cristo Nosso Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor. Amen.
Felicita-o pelos trabalhos suportados por Cristo
1. Deus Nosso Senhor sabe quanto eu mais folgara de vos ver que escrever, e de me consolar com vossos trabalhos, todos tomados por amor e serviço de Deus Nosso Senhor: que com as consola­ções dos que levam vida descansada por se lograrem dos deleites do mundo, destes é para haver grande compaixão; e dos outros, de quem S. Paulo (*Hb 11,38) dizia que «o mundo não era digno», é para haver grande inveja.

Envia Baltasar Nunes para o ajudar. Ele vai a Goa tratar de assuntos dos cristãos. Se o Superior da missão achar necessário, também pode ir a Goa tratar-se da saúde
2. Lá mando Baltasar Nunes2 para que esteja nesse reino de Tra­vancor para vos ajudar em vossos trabalhos e consolar-vos neles, es­perando de Deus Nosso Senhor o prémio verdadeiro. Eu parto para Goa, para favorecer estes cristãos sobre um negócio, o qual espero que virá a lume e será causa [de] que muitos se façam cristãos3: encomen­dai-o a Deus, rogando-lhe que, ainda que nossos pecados sejam gran­des e não sejamos merecedores de ser instrumentos de tanto serviço seu, Ele, por sua bondade infinda e amor sem fim, se queira servir de nós para acrescentamento de sua santa fé. O P. António(*Criminali) vos irá ver em breve. Se vos achardes doente do corpo e que, lá onde estais, não podeis trabalhar, fareis o que o Padre vos disser acerca da vossa estada nessas partes ou de ir para a Índia a vos fazer curar em Goa. De Duar­te5, se não tiverdes necessidade dele, mandai-o ao Padre António.

Previne-o contra desânimos enganadores do demónio
3. Não vos desconsoleis em ver que não fazeis tanto fruto com es­ses cristãos como desejais, por serem eles dados a idolatrias e o rei ser contra os que se fazem cristãos6. Olhai que mais fruto fazeis do que cuidais, em dar vida espiritual às crianças que nascem, batizando-as com muita diligência e cuidado, como fazeis: é que, se bem olhais, achareis que poucos vão da Índia ao paraíso, assim brancos como pre­tos, senão os que morrem em estado de inocência, como são os que morrem de 14 anos para baixo. Olhai, Irmão meu Francisco Henri­ques, que fazeis nesse reino de Travancor mais fruto do que cuidais! E olhai: depois que vós estais nesse reino, quantas crianças batizadas espanteis [de] o inimigo vos dar muitas turbações para vos lançar fora morreram7 e estão agora na glória do paraíso, as quais não gozariam de Deus se vós aí não estivésseis! O inimigo da humana natureza vos tem muito aborrecimento e vos deseja ver fora daí, para que desse reino de Travancor não vá ninguém para o paraíso. Costume é, do diabo, representar maiores serviços de Deus aos que servem a Jesus Cristo, e isto, com má intenção: para (*des)inquietar e desassossegar uma alma que está em parte onde faz serviço a Deus, para a tirar e lançar [fora] da terra na qual faz serviço a Deus. Temo-me que o inimigo nesta parte vos combata, dando-vos muitos trabalhos e desconsola­ções, para vos botar fora daí. Olhai que, depois que estais nesta Costa – que podem ser oito meses – [já] salvastes mais almas, batizando crianças que depois de baptizadas morrem, do que salvastes em Por­tugal ou de Coulão para lá. Se, em tão pouco tempo, mais almas salvastes nesta Costa, do que salvastes antes que a ela viésseis, não vos dessa terra, para onde não façais tanto fruto como aí.

2 Baltasar Nunes, S.I., nascido por 1523, entrou na Companhia de Jesus em Coimbra em 1544 e em 1546 partiu para a Índia. Em 1547 esteve em Chaul e em 1548-1552 foi missionário no Cabo de Comorim. Obrigado por doença a viver em Goa, ali morreu na ilha de Chorão em 1569 (SCHURHAMMER, Ceylon 656; Doc. Indica I II Índices).
3 Xavier visitou a Pescaria em Outubro e de lá trouxe alguns pedidos dos cris­tãos para o Governador Garcia de Sá que lhos concedeu (Epp. Xav., epp. 75 a e b).
5 Ajudante indígena, de quem não temos mais dados.
6 Os reis de Coulão e Travancor, abandonados pelos portugueses, tiveram de ceder a parte meridional da região de Tinnevelly ao imperador de Vijayanagar e até, muito a seu pesar, ficar seus vassalos. Irritado, o rei de Travancor, instigado pelos muçulmanos, proibiu aos seus súbdi­tos fazerem-se cristãos. Francisco Henriques protestou em Coulão e Goa, mas sem resultado).

Vai mandar Cipriano e Manuel de Morais para Socotorá.
4. O Padre Cipriano10 e Morais11 mandei-os para a ilha de Soco­torá, onde há muitos cristãos [e] onde não há Padre nem ninguém que os batize12.

Espera de dia para dia os que vêm da Europa. Não sabe se já chegou a nau em que vem António Gomes
5. Os Padres que este ano vieram do Reino13, espero cada dia por eles, que hão-de vir para estas partes14, porque assim lhes man­dei que viessem, quando de Goa parti para estas partes. Eles trarão notícias de António Gomes15: se já é chegada a nau em que ele vinha com seus companheiros16, porque à minha partida de Goa ainda não era chegada17.
Nosso Senhor vos dê muita saúde e vida para seu santo serviço e, depois desta vida acabada, vos leve à glória do paraíso.
De Punicale, a 22 de Outubro de 1548 anos.
Depois que viemos de lá.

(Por mão de Xavier): Vosso Irmão em Cristo, FRANCISCO


CARTA 70 / CONTINUAÇÃO
AO PADRE INÁCIO DE LOYOLA (ROMA)
Cochim, 12 de Janeiro 1549
Virtudes reque­ridas nos missionários que se mandem para o Oriente

3. Os índios desta terra, assim mouros como gentios, são muito ignorantes, todos os que até agora tenho visto. Para os que hão--de andar entre estes infiéis convertendo-os, são necessárias muitas virtudes: obediência, humildade, perseverança, paciência, amor ao próximo e muita castidade pelas muitas ocasiões que há para pecar; e que sejam de bons juízos e corpos para levar os trabalhos. Esta conta dou a vossa Caridade, pela necessidade que me parece que há para que prove os espíritos dos que daqui em diante há-de mandar a estas partes da Índia. Se não forem provados por vossa Caridade, sejam por pessoas de quem muito confieis, porque há necessidade disto: requerem-se pessoas de muita castidade e humildade, de maneira que não sejam notados de soberba.
Necessidade de um reitor amável e competente para o colégio de Goa
4. Quem tiverdes de mandar, Pai meu, para que tenha cargo do colégio da Santa Fé de Goa, e dos naturais da terra [aí] estudantes, e de todos os da Companhia3, é necessário que tenha estas duas qua­lidades, deixando aparte todas as outras, que há-de ter quem há-de reger e mandar a outros. A primeira, muita obediência para se fazer amar, primeiramente, de todos os nossos maiores eclesiásticos e, de­pois, dos seculares que mandam na terra, de maneira que não sintam nele soberba mas antes muita humildade. Isto digo, Pai meu, porque a gente desta terra, assim eclesiástica superior nossa, como secular que manda na terra, quer ser muito obedecida. Quando sentem em nós esta obediência, fazem tudo o que lhe pedimos e nos amam; mas quando vêem ou sentem o contrário, desedificam-se muito. A se­gunda é que seja afável e aprazível, com os que trata, e não rigoroso, usando de todos os modos que puder, para se fazer amar, principal­mente dos que há-de mandar, assim [dos] naturais índios como dos da Companhia que cá estão e hão-de vir. Nos4 da Companhia de um mandato que trouxe de maneira que não sintam nele que, por rigor ou por temor servil, se quer fazer obedecer: é que sentindo nele rigor ou temor servil sairão da Companhia muitos e entrarão nela poucos, assim índios como outros que não o são. Isto vos digo, Pai meu da minha alma, porque cá pouco se edificaram para prender e mandar presos em ferros para Portugal aos que a ele lhe parecesse que cá não edificam5.

A Companhia de Jesus é Companhia de amor e não temor
5. Até agora, a nenhum me pareceu ter na Companhia por força, contra sua vontade, a não ser por força de amor e carida­de. Pelo contrário, aos que não eram para a nossa Companhia, os despedia desejando eles não sair dela6; e, aos que me parecia que eram para a Companhia, trato-os com amor e caridade para mais os confirmar nela – pois tantos trabalhos levam nestas partes para servir a Deus Nosso Senhor – e também por me parecer que Com­panhia de Jesus quer dizer Companhia de amor e conformidade de ânimos, e não de rigor nem temor servil. Esta conta dou, a vossa santa Caridade, destas partes, para que proveja de pessoa suficiente a este cargo para o ano, de maneira que saiba mandar sem que se enxergue nele desejo de querer mandar ou de ser obedecido, mas antes de ser mandado.

Não vê que entre os indianos possa recrutar gente que dê continuidade ao cristianismo e à Companhia de Jesus sem os missionários estrangeiros. Dificuldades para isso
6. Pela experiência que tenho destas partes, vejo claramente, Pai meu único, que pelos índios, naturais da terra, não se abre caminho de que por eles se perpetue a nossa Companhia7. Tanto durará neles a cristandade, quanto durarmos e vivermos os que cá estamos ou daí mandardes. A causa disto, são as muitas perseguições que padecem os que se fazem cristãos, as quais seriam longas de contar. Por não saber a cujas mãos estas cartas poderão chegar, as deixo de escrever.
Em todas as partes desta Índia, onde há cristãos, há Padres da Companhia: em Maluco há quatro8; em Malaca, dois(*Pérez e Oliveira); no Cabo de Comorim, seis10; em Coulão, dois11; em Baçaim, dois12; em Soco­torá, quatro13. Por estarem estes lugares tão remotos uns dos outros – Maluco mais de mil léguas de Goa, Malaca quinhentas, o Cabo de Comorim duzentas, Coulão cento e vinte e cinco, Baçaim sessenta, Socotorá trezentas – em todos estes lugares estão Padres da Compa­nhia a quem dão obediência os outros da mesma Companhia que estão com eles, pois são pessoas de muita edificação. Por isso, onde estão estas pessoas da Companhia, a quem dão obediência os que estão com eles, não faço nenhuma falta.
7. Também faço saber a vossa Caridade que os portugueses, nestas partes, não senhoreiam senão o mar e os lugares que estão à beira-mar; de maneira que na terra firme não são senhores, senão nos lugares em que eles vivem.

3 Alude a António Gomes, que Simão Rodrigues, provincial de Portugal e seus domínios desde 1546, tinha nomeado reitor do colégio de Goa. As dificuldades que podia haver solucionou-as Inácio, nomeando Xavier provincial da Índia, de maneira que podia depor do seu posto a António Gomes (MI, Epp. II 557; 570).
4 António Gomes.
5 Já vimos anteriormente que os reis Tabarija e Hairun e o capitão Freitas fo­ram enviados para Goa atados com cadeias. De maneira semelhante, o mansíssimo Bispo de Goa ordenou que remetessem para Goa, onde tinha os seus cárceres, alguns clérigos encadeados. Inácio e Lainez, seu sucessor no generalato, foram adversos a estabelecer cárceres na Comp. de Jesus.
6 No sumário de resposta de Inácio diz-se a isto:«Que faz bem em despedir os admitidos à Companhia, que não dêem boas provas» (MI, Epp. II 570).
7 Inácio, na sua resposta, propõe cinco maneiras de promover as vocações indígenas (MI, Epp. II 570;)
8 Beira, Ribeiro, Nunes; o quarto era talvez Afonso de Castro, destinado às Molucas (cf. Xavier-doc. 82, 3).
10 Criminali, F. e H. Henriques, Adão Francisco, B. Nunes, P. do Vale (Doc. Indica I 441-442).
11 Lancillotto e L. Mendes (Xavier-doc. 78,16). Foram para Coulão a 12 de Janeiro (Xavier-doc. 71,6).
12 Belchior Gonçalves e Luís Frois.

Os índios, naturais destas partes, são desta qualidade: por seus grandes pecados, não são nada inclinados às coisas da nossa santa fé, mas antes lhes aborrecem muito e lhes pesa mortalmente quando lhes falamos e rogamos que se façam cristãos. De maneira que, ao presente, conservam-se os cristãos que estão feitos. Contudo, se os fiéis destas partes fossem muito favorecidos pelos portugueses, muitos se fariam cristãos. Mas vêem os gentios que são tão desfavorecidos e perseguidos os que são cristãos, que por esta causa não se querem fazer.

73
AO PADRE SIMÃO RODRIGUES (PORTUGAL)
Cochim, 20 de Janeiro 1549
Duma cópia em castelhano, feita em 1549
Primeira via
IHS
A graça e amor de Cristo Nosso Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor. Amen.
Louva os missionários jesuítas recém-chegados e começa a dispor deles
1. Não poderia acabar de escrever-vos, Irmão meu Mestre Simão, a consolação que recebi com a vinda de António Gomes e de todos os outros Padres. Haveis de saber que fazem muito fruto nas almas e grande serviço a Deus Nosso Senhor, assim na vida como em pregar, confessar, dar Exercícios Espirituais e tratar com as pessoas. Estão todos os que os conhecem muito edificados. São as necessidades de pessoas da nossa Companhia muito grandes nestas partes. Principal­mente na cidade de Ormuz1 e de Diu2, mais que em Goa, porque por falta de pregadores e de pessoas espirituais andam muitos portu­gueses fora da nossa lei. Por ver esta necessidade tão grande, enviarei António Gomes para Diu ou para Ormuz, pois Deus Nosso Senhor lhe deu tanto talento e fervor em pregar, confessar e dar Exercícios Espirituais e tratar com os cristãos. E Mestre Gaspar3 ficará no colé­gio de Santa Fé.

Pede que venha o próprio Simão Rodrigues com muitos mais, com as devidas qua­lidades

2. Muito grande serviço a Deus Nosso Senhor faríeis, Irmão meu caríssimo, se viésseis a estas partes da Índia com muitos da Companhia: entre eles, sete ou oito pregadores e, outros, ainda que não tivessem talento de pregar, sendo pessoas de muitas mor­tificações e experiência de muitos anos, ainda que não tivessem tantas letras, para a conversão dos infiéis fariam muito. É que, os infiéis destas partes, são gente muito bárbara e ignorante. Com ter medíocres letras e muitas virtudes e forças corporais para levar os trabalhos destas partes, fariam muito serviço a Deus Nosso Senhor pelas fortalezas destas partes. Onde houvesse um pregador da nossa Companhia e outro companheiro Padre que o ajudasse a confessar e dar Exercícios Espirituais, fariam facilmente um colégio, em que recolhessem os filhos dos portugueses, primeiramente e, depois, outros naturais da terra.

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